"Começamos oprimidos pela sintaxe e acabamos às voltas com a Delegacia de Ordem Política e Social, mas, nos estreitos limites a que nos coagem a gramática e a lei, ainda nos podemos mexer"
Graciliano Ramos

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Caso Quixote.

Em uma das minhas andanças da vida, conheci, assim, de vista, um rapazote novo. Que vivia às imediações de biblioteca da faculdade.  Eu, já velho, trabalhava como auxiliar na mesma biblioteca. E gabo-me por saber a localização de cada livro e revista de lá. Não que tenha lido, nunca tive o hábito. Já me arrisquei com umas obras clássicas, mas foi há tempos.

Abro a biblioteca às oito horas da manhã, e fecho-a as dez horas da noite.  E a partir do período da tarde, esse rapaz que citei aparece por lá, e fica. Fica. Fica por tempos, passeando pelo perímetro das prateleiras, como se fosse ele o auxiliar. Nunca me pedira uma só ajuda. Aliás, raras as vezes que o via sair com algum livro.

Não sei há quanto tempo frequenta, dei conta que ele aparecia lá todo dia no segundo trimestre da faculdade, talvez seja freguês de longa data que não se fazia presente. Ele era discreto, franzino. O cabelo castanho acabava no pescoço. Devia medir um metro e setenta centímetros. Usava uns óculos de designer, o que dava um charme para aquela pessoinha retraída e sutil que era ele. Sabia não ser percebido. Dias pensava tê-lo trancado dentro da biblioteca. E voltava na dúvida. Abria a porta e ninguém.  Me perguntava quando tivera saído, mas era inútil. Ele desaparecia. Detentor do verdadeiro dom da sutileza.

Ele chegava por volta das treze horas e meia. E começava a caminhar pelos corredores de prateleiras. Sentia os livros. Cheirava-os. Conversava intimamente com os livros. Compartilhava informações e experiências. Isso devido a cochichar rente a uma parte da segunda prateleira. Todos os dias, ele parava naquela extremidade, e lá ficava. Por horas, todos os dias. Lá estava. Lá! Estava lá o livro. Seu amante livro. Dom Quixote era o alvo de todo o fascínio do rapaz. Era o confidente dele. Seu psicólogo. Seu psicoterapeuta. O rapaz ficava lá no namoro todos os dias, por horas e curiosamente, nunca pegara o livro. Quando a biblioteca ficava mais movimentada, ele ia até a divisão da prateleira, e guardava o livro com zelo sem tamanho. Todos que passavam por lá, eram perseguidos pelo olhar penetrante e intimidador do rapaz. Puro ciúme!  Olhava os livros dos colegas para garantir que seu futuro passatempo literário não seria tomado.

Certo dia. Final da semana já. Estava sentado à mesa à folhear uma revista, quando  o vi. Sim, tocando em seu livro mágico. Momento de euforia. Era o nervosismo pré-sim dos casamentos. Ele com dois dedos, trêmulo e inclinando o livro para a diagonal, em sua direção. Era agora. Ele ia locar o livro e lê-lo. Pena. O devolveu rapidamente e ficou a fita-lo. Ele apenas olhava. Com certa vergonha.

Passado o fim de semana, lá estava ele. Seguindo a rígida rotina. Cada vez com mais intensidade. Sempre esperando o dia certo. O dia em que pegaria seu livro, o leria, e seria plenamente feliz em suas vontades. Todos da biblioteca se acostumaram com a cerimônia, os frequentadores nem procuravam mais o tal de Dom Quixote. O caminho estava livre, era agora só ele e o Quixote. Ele e os gigantes. Ele e Sancho.  Mas ainda sim, o inexplicável o impedia. Nada podia tirar o livro de seu altar. Era Deus e seu trono.

E acabou o ano letivo, chegou a minha aposentadoria e passei a viver de ócio. Ócio tanto que dei de escrever algumas reminiscências curiosas. Reminiscências engraçadas do ponto de vista filosófico. O caso do livro é uma questão difícil. Mais do que difícil. É metafísica.  Como a loucura de Dom Quixote de La Mancha, que é transmitida por não-sei-o-que para alguns frágeis leitores e amantes. É o canto da sereia.