"Começamos oprimidos pela sintaxe e acabamos às voltas com a Delegacia de Ordem Política e Social, mas, nos estreitos limites a que nos coagem a gramática e a lei, ainda nos podemos mexer"
Graciliano Ramos

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Elegia do bicho da elegia


Empreguei-me em construir um animal 
Tal qual o Elefante de Drummond.
É pena: Na tentativa de fazer viver o Leão
Me dei com um bicho disforme, sem charme;
Sem fome ou carne que lhe aprazesse.
Não era o Animal da poesia, era apático.
Não tinha os olhos de matéria prima infigurável;
Nem o corpo cheio daquele simpático 
Odor que só pessoas sensíveis podem exalar.


Era cinza e quadrado
Tinha as pernas duras
E precisava de rodinhas.
Não era o imaginado.
Nas suas formas cruas
Nem um sorriso tinha. 


Quis esconde-lo, destruí-lo
Queria dá-lo, enterrá-lo; 
E os que me visitavam: 


"Que mediocre seu animal; que figura deprimente.
Bicho mais indecente; criatura anormal."


Lamentei a criação, 
Esse animal sem culpa. 
E o escondi sem abraços
No armário onde vivem
Os meus bichos de fracassos.


E é resumidamente disso que nós vivemos.
Do que era pra ser e que não foi.
Do que não era pra ser e que não foi. 
dos animais que inventamos e escondemos.
Dos romances geniais que não publicamos;
Das ideias que não saem de uma voz rouca.
Das filosofias ideais que nunca propagamos;
Isso é o que é ser gente!
Isso que é ser Pestana, que é tocar polca,
Humano menor. 
Humano pior.

sexta-feira, 15 de junho de 2012

Dos Insultados II


 I
Amei em minha vida apenas duas mulheres. A segunda, minha esposa com quem tenho dois filhos que não entram no conto e a primeira, sobre quem escreverei. Chamava-se Lívia, nossas vidas entrelaçaram-se em dois períodos distintos, ambos deveras intensos. Conhecemos-nos no auge de nossa adolescência, começávamos o ensino médio. A primeira vez foi em um desfile cívico pela escola; tinha deixado minha carteira com um professor e esse pediu a ela que me entregasse. Desde então, nos tornamos íntimos e suspeitamente unidos. Meses depois começamos a sair, tudo às escondidas mesmo sem a necessidade – Ficamos tanto tempo juntos como amigos que todos acabaram por duvidar da existência de um relacionamento – e duramos dois meses. Acabou repentinamente; certo dia, chegamos à escola e não houve beijo, nem carícia, nem mimo, e os dias que seguiram continuaram sem nenhuma demonstração de carinho a mais até que nossas vidas desvencilharam-se.
            
         II

Anos mais tarde voltamos a nos ver por conta de uma generosa coincidência.

- Lívia, o que faz aqui? Disse eu, boquiaberto.
- Eu quem lhe pergunto, Eduardo! Não sabia que conhecia minha Avó.

Já Recomposto, expliquei-lha a minha condição:

- Pois então, ela é amiga de minha “dinha”, e como ela vem muito até aqui, vivo a acompanha-la.

 Lívia havia se mudado para a casa de sua Avó, que coincidentemente recebia visitas diárias da minha madrinha. De início, nada.  Mas com a recorrência das visitas, fomos nos reafeiçoando. E em dois meses já estávamos nos olhando nos olhos. Certo dia a avó de Lívia comentou que nós formávamos um bonito casal; coramos apenas, mas coramos bastante. E eu não sei quando à Lívia, mas eu...

-Li. Janta comigo hoje?

Lívia fez como quem quisesse ir, mas recusou.

- Eduardo... Não posso.
- Mas por quê?
- Prometi à vovó...
         
       É verdade que prometia à avó dela todos os dias. Não suspeitei de início porque estava entusiasmado com a hipotética possibilidade de reatar. Passadas umas semanas comecei a imaginar que me evitava, que na verdade ela era apenas gentil comigo, ou estava fazendo alguma brincadeira de mau gosto típica de mulher cruel com a qual ela e assemelhava – Certa vez, em tempos de escola, convidou um amigo meu para ir ao cinema, e por prazer, passou-lhe a sessão errada; ela foi com sua mãe na sessão anterior –. Vivia a me deixar falando com as paredes, inventava afazeres ou simplesmente praticava o ócio longe de mim. Quando eu me cansava, ela voltava cheia de mimos, para me evitar novamente, perpetuando o ciclo.
  
              III

Quando comecei a trabalhar as visitas foram rareando; passava o dia todo no escritório de um amigo meu, o ajudando, e quando voltava pra casa só pensava em descansar. Nesse período comecei a tomar conta de como eram esfinges as mulheres. Lívia subitamente tornou-se amável, de modo que insinuasse claro interesse sexual. Na época pensei que eram saudades, inflei meu ego, mas não; não era tão simples. Aquela mudança de comportamento – isso é claro agora – era sinal de que ela perdia a minha rédea, a esperta Lívia estava deixando de ser a supressora, não sentia mais que a minha existência só era possível em favor a dela.

- Du... posso te perguntar uma coisa? Perguntou-me ela, com os dedos entre os meus.
- Fala, Lívia.

                Falava em tom choroso, de manha. Olhava pra cima e depois se escorava no meu ombro; depois de um tempo eu já tinha decorado seu procedimento espontâneo.

– O que você tem feito? Mal vem me ver agora...
- Ando trabalhando muito, fico sem tempo.
- Entendo, mas arranje unzinho pra mim, Du, eu sinto sua falta...

                Dali a três meses e estávamos namorando. Namorando! Espanto-me agora não saber como começamos, mas não importa, a questão é que começamos. Comecei a dar escapadelas do trabalho para ir vê-la escondido. Tínhamos vinte e um anos ambos e nossa ânsia de nós mesmos urgiu que eu propusesse o famigerado noivado. Daí mais uns meses veio o noivado. Noivado que eu só não queria mais que um par de sapatos luxuosos que eu tinha visto na cidade um dia antes de fazer a proposta à Lívia.

                IV

Os sapatos merecem uma narração à parte. Eu ia ao trabalho numa quarta ou quinta feira e acabei parando em uma vitrine no meio do caminho. Fora um par de sapatos, nunca tão luxuosos. Vi aqueles sapatos homéricos e logo os imaginei em meus pés, e eu encarnado em Hermes entregando mensagens aos deuses.  Admirei aquelas obras de arte o suficiente para me atrasar. Seus detalhes eram ínfimos, seu formato simétrico e sua cor limpa o faziam perfeito. Aquele sapato era, definitivamente, um soneto. Comentei com todos com quem pude. Até levei alguns para ver aqueles magníficos sapatos na vitrine, inclusive Lívia, que achou graça. Dizia “não entender a paixão por coisas ornamentadas que eu tenho” e brincou que eu não era apaixonado por ela, devido ao fato dela ser ornamentada na ordinariedade. Ri e neguei, a amava mais que tudo no momento, não mais que os sapatos.

                V

Depois de noivados festejamos com nossas minúsculas famílias e continuamos a viver normalmente. Nós nos amávamos infinitamente e passávamos horas trocando meiguices e carícias. Não falo do sexo para preservar a inocência do conto, mas não nego sua existência; subentende-se. Passamos dias maravilhosos de amor mútuo e de carinho exagerado, mas em duas semanas Lívia começou com umas tosses e em prazo de um mês fora descoberta uma moléstia grave. Lívia morreria em breve. Foi um choque para todos, principalmente para mim. Chorei, discuti com médicos, trabalhei dobrado para custear os remédios, mas foi em vão.

    Ia visita-la toda noite, quando tinha tempo livre. Dormia em sua casa. Certa vez, quando eu saia, agarrou meu braço:

- Eduardo, me promete que se eu morrer você não me esquece?
- Você não vai morrer...
- Mas e se? Perguntava Resoluta.
- Que conversa tonta, meu doce, é lógico que eu não te esqueço.
- Promete que segue em frente?
- Deixa de besteira, vem tomar seu remédio.

                Dois dias depois Lívia faleceu. Foi uma infelicidade imensa. Meu luto foi secular, não a queria longe de mim, nem sabia o que fazer. Pensei em sair da cidade, me matar, começar uma terapia, me alistar e uma gama de outras soluções fundamentadas no escapismo, mas foi em vão. Minha desolação perdurou mais ainda do que o luto. Só vim a melhorar no fim de tudo, quando uma senhora para quem eu contei minha história disse que “A minha noiva tinha virado um anel de saturno”.¹















Nota¹: Esqueça a comoção quem me lê, menti todo o último capítulo. Queria ares de tragédia e pari um dramalhão; pois que pinguemos os is. O que tenciono escrever aqui é a verdadeira derrocada do meu relacionamento; mais simples, e também, naturalmente mais sem graça. Dois meses após o meu noivado, em uma das minhas escapadelas do trabalho fui até a casa dela e –suspense – encontrei uma carta cheia das mais tenras escusas. Lívia havia fugido para completar os estudos. A carta dizia que não podia viver daquele modo, que queria fazer carreira, ter renome. Entristeci instantaneamente, a amaldiçoei como pude e ao sair, furioso, vi uma caixa cheia de ornamentos que me atiçou. Num gesto mais de vingança do que de curiosidade, toquei na propriedade que não era minha. Eram os sapatos da vitrine, os magníficos sapatos da vitrine, me encarando, implorando para que os calçasse. Como se a vida estivesse me mandando os mais sinceros perdões. Os calcei, mais como espólio de guerra do que como lembrança e fui pra casa. Não os calço mais: tenho novos. A própria vida tomou-os de volta, retirando assim as escusas e as demonstrações de complacência. 

terça-feira, 5 de junho de 2012

Dos Insultados I


I
A capital de Adalberto é palco de tragédias e comédias diariamente, pois João, o filósofo, fez o impensável, escreveu nas linhas de sua própria vida uma tragicomédia sem nenhum fator atenuante. O chamado João Adalberto ainda sofria, na casa de sua mamãe, com sua decepção filosófica. João procurava algo para justificar seu fracasso no campo da metafísica, algo pelo qual não se perdoava, naturalmente. Mas antes, deve-se colocar os pingos nos is. Seis meses antes, estavam todos os seus amigos e familiares festejando sua nova tese em sua casa no interior sem saber que exatamente no dia seguinte seu motivo de festa acabaria; Adalberto criou um conceito dicotômico para dois ambitos sociais: O real e o virtual. Seu trabalho poderia seguir uma linha revolucionária, porém acabou muito semelhante às teorias platônicas. A editora lhe enviou uma carta de rejeição e uma insinuação sutil de que sua tese era plágio. 



Choque! É o fruto do trabalho intelectual do médio homem. Não todos os homens, porém não poucos. João fez-se inconsolável, não comia, e pouco falava, nas raras vezes em que arriscava uma frase, eram lamúrias: 


- Não é possível, o que essa gente sabe de filosofia?! O básico! Querem apenas vender e vender. Minha tese não é um best seller!


- Meu bem, calma, assim você vai acabar desmaiando. Ouça a o que a sua mãe lhe disse, dê um tempo, descanse...


Sua mulher, foi quem o impediu de entrar em colapso. O fez ir para casa de sua mãe na capital, onde ele ficou durante sua recuperação.


II


Foram seus seis meses de maior martírio, ah, como sofreu! Habituou-se a pensar que era um mau-filósofo e que se não era bom nem no que gostava de fazer, não havia lugar pra ele nesse mundo. "Nem pra fazer o que amo eu sirvo, mas que culpa tenho eu se não tenho nenhum talento? Não, a culpa não pode ser minha, eu fiz tudo direito, tudo certinho; deve ser mamãe, os genes da parte dela nunca pareceram genes de pessoa genial, sim, a culpa é da senhora minha mãe! Mas... Ela sempre me deu tudo... Sempre me incetivou, não pode ser mamãe! Aqueles almoços maravilhosos não podem ser falta de qualidade genética. Papai, foi ele! Não, não, nem o conheço... Se o meu professor de filosofia tivesse cobrado mais de mim, talvez..."
Não havia um culpado que se encaixasse, era ele, a teoria dele e Platão; nem Platão ele poderia culpar. Viveu há tanto, há tanto... Nunca poderia imaginar que entre as linhas de "A república", talvez estivesse fadando João à infelicidade . Seus dias passaram-se cômicos, a sua mãe cuidava dele com zelo infinito, sentia-se de novo com onze anos, pueril, às vezes birrento. Sua condição era primordialmente a de aceitar o seu futuro ordinário, já que não era bom o suficiente para que o mundo o deixasse crescer. Sua existência jamais fora tão infeliz, pensava em trabalhar no campo, ou fazer trabalho braçal, porém simples; talvez a base da pirâmide social fosse mais feliz sem toda essa necessidade de entender o mundo real, o mundo ideal, a sociedade, os sonhos, a política, o coletivo e o individal; talvez o conhecimento só o levasse a um caminho sempre decepcionante. Seria assim pra sempre, todos nós presos nesse plano infeliz tendo ideias infelizes e fadados a tão indesejada anomicidade desde o início dos tempos.


- Isso, desde o início dos tempos... Diabo, como não me passou pela cabeça antes?! 


III


Finalmente! Sim, João Adalberto chegou a uma senhora epifania! Concluiu que todos nós, em nossos pensamentos infelizes, desde o início dos tempos pensamos coisas que se repetem. Bastava pensar na quantidade de gente que há no mundo, na quantidade de gente que havia e no fato de todos pensarem individualmente. Quem não garantiria que já tivessem pensado a Odisseia antes mesmo dela ser escrita? Sendo assim o pensamento é público, nunca poderá ser patenteado, pois estaria atentando contra a propriedade de milhares - quem sabe milhões - de outras pessoas que também pensaram a mesma coisa. Então Dom Quixote não é só de Cervantes, O Discurso do Método não é inteiramente de Descartes e a filosofia fracassada de João não era integralmente platônica. 


"Como sou genial, além de criar uma filosofia nova, recuperei a minha antiga..." Adalberto não cabia em si. Em algumas semanas já havia escrito o seu ensaio sobre a propriedade universal do pensamento criativo e estava festejando até dentro do banheiro. Marcou uma segunda grande festa - talvez o fracasso esteja na festa - onde comemorou o seu sucesso filosófico com toda a comunidade acadêmica da capital. Uma semana depois as cartas de rejeição das editoras chegaram. Não contava com a filosofia moderna do século XX, que já havia feito essa constatação. 

IV


Morreu idoso, residindo na casa de sua mãe, na total ordinariedade.