"Começamos oprimidos pela sintaxe e acabamos às voltas com a Delegacia de Ordem Política e Social, mas, nos estreitos limites a que nos coagem a gramática e a lei, ainda nos podemos mexer"
Graciliano Ramos

sábado, 28 de janeiro de 2012

Princesa tenebrosa.

A princesa tenebrosa
roubou o amor de Romeu
com sua graça engenhosa
que roubou também o meu.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

O Quintanesco.

O velho Raimundo viu chegar os tempos de esquecimento; cumprimentou-os e os convidou para almoçar. Raimundo vivera já oitenta e cinco anos, tão cheios de acontecimento que pareciam ser infinitos. Porém, o esquecimento veio para dizer que ele precisava descansar. E Raimundo, em sua cadeira virada para a janela do apartamento, concordava a cada vez em que o esquecimento levava-lhe uma memória. Quando a gente envelhece, a gente diminui, e as grandes memórias já não podem mais ocupar um tão disputado espaço em um cérebro cansado.  E a cada jantar, cada passeio imaginário pelas praças do exterior, a cada banho, o esquecimento levava uma grande memória de Raimundo; foram-se as guerras em que lutou, seus casamentos, seus filhos, todo o trabalho de sua vida e todos os romances Realistas. Tempos depois fui visita-lo; e espantem-se. Não há no mundo um velho mais feliz. Não há no mundo um tão pequeno velho. 

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Curto conto do esquecimento.

Dagoberto esquecia-se com frequência. Vivia uma rotina corrida e maçante que o impedia de se lembrar das diversas responsabilidades que um homem empregado tem.  Trabalhava em um escritório de promotoria que ficara famoso com o sucesso num caso em que Amadeu, o promotor, conseguiu com sucesso condenar um cão que matou outro cão em uma crise de ciúmes. Amadeu era o dono do escritório; inteligente e carismático, fez uma carreira meteórica dentro dos tribunais de todo o estado condenando criminosos que aparentavam acima de tudo ser inocentes. Educado, com uma tendência ao puritanismo, ele tinha  talento em culpar as pessoas, sentia a culpa delas.  O único defeito aparente de Amadeu era a sua recusa a contratar outro secretário, deixando pilhas e pilhas de processos e documentos nas mãos do raquítico Dagoberto.

O escritório ficava em uma avenida famosa do centro. Era fato que o prédio não chamava atenção; possuía uma fachada simplória e tímida; era uma casa da década de 40, encolhida entre um edifício residencial e um mercado médio. Dagoberto começava seu expediente às 8h e terminava às 17h30; trabalhava também até às 20h, em dia de mais trabalho, conseguindo assim faturar umas horas extras. Morava em um apartamento nos subúrbios com seus pais e um irmão mais novo.  Era magro, tinha cabelos curtos e olheiras enormes, com exatamente vinte e três anos, e um brinco na orelha. Terminara os estudos aos vinte anos, pois repetiu duas vezes o 6º ano, por falta de atenção; oriunda daí a ideia de seus pais de que ele tivesse algum déficit de memória. Sua mãe chegara a levar em alguns consultórios, que sempre confirmavam que o rapaz era completamente normal; receitavam um remediozinho, e o despachavam. Após várias idas sem encontrar nenhum sinal de deficiência mental, transtorno psicológico ou lesão no cérebro, seus pais desistiram de trata-lo e deixaram que a rotina se apoderasse deles novamente. Dagoberto, no começo tinha medo, pensava que era louco vendo a gravidade que a sua mãe dava aos seus esquecimentos; a primeira ida a uma clínica foi quando o pequeno Beto (como era chamado na infância) chegou da escola sem a sua bolsa que, pobrezinho, tinha esquecido no banheiro.  Desde antão, foram muitos horários perdidos e atrasos justificados unicamente pelos seus esquecimentos.  Quando seu irmão percebeu esse problema, adquiriu o perverso hábito de perguntar onde Dagoberto esquecera as coisas que na verdade ele não esqueceu, apenas para vê-lo em desespero; em dada ocasião, disse que Dagoberto esqueceu os documentos de sua mãe no escritório da promotoria, o fazendo ir até lá procurar; voltou apenas no dia seguinte, pois tivera medo de falar à mãe que perdeu os documentos dela. Quando o viu, o irmão de Dagoberto acabou-se em risos, contando a verdade para ele, que suportou pelo o fato de o algoz ser seu irmão mais novo.  Dagoberto até então era feliz, sua memória falhava em registrar a infelicidade diária que o cercava, assim como falhava em leva-lo à escola nos seus primeiros anos letivos.

Às 6h de uma quarta-feira, Dagoberto estava indo comprar pães; havia acordado 20 minutos antes. Ao voltar para casa, preparou o café para seus pais e para o irmão e se dirigiu a televisão para assistir alguma das dezenas de novelas que sua mãe tinha gravado ao longo da sua vida de dona de casa. Quando o relógio bateu 7h30, Dagoberto sentiu que se esqueceu de algo; e tinha de fato esquecido. Foi até a geladeira, guardou os litros de leite que deveria ter guardado na noite anterior, fechou-a e voltou para a sala. Assistiu a novelas até a hora do almoço, quando seus pais chegaram do trabalho e foram acordar seu irmão mais novo. Almoçaram juntos, como de costume, e depois foram os pais ao trabalho e o irmão caçula de Dagoberto a escola. Ficara sozinho novamente, sentindo-se ocioso, já.

Amadeu chegou ao escritório às 8h e viu que Dagoberto se atrasara novamente; estava já pensando em uma repreensão adequada quando começou a preencher os documentos que seu secretário deixara para fazer nessa manhã. Quando soarem 10h no relógio, Amadeu estava em desespero. Precisava protocolar e remeter documentos importantes e só tinha essa quarta para isso. Também havia hoje o julgamento um famoso ladrão de carros que fora pego dormindo no banco traseiro de uma camionete desaparecida há quatro anos. Praguejou contra Dagoberto com todas as suas forças e foi obrigado a pedir que enviassem outro promotor para a audiência, pois Amadeu estava ocupadíssimo hoje.  Ás 21h45 soube que o ladrão de carros foi inocentado e que seria solto de imediato. Foi a última má notícia do dia.

Em casa a mãe de Dagoberto estranhou que ele estivesse em casa no horário correto do expediente dele e perguntou como foi o trabalho. Dagoberto recebeu um choque de realidade e lembrou que trabalhava! Ficou atordoado e não soube o que fazer.”Como pude me esquecer?!”  e começou a andar pela sala em círculos, quase subiu pelas paredes, até que sua mãe o aconselhou a ir dormir e resolver esse acidente amanhã de manhã. 

Quando acordou, Dagoberto se arrumou e foi direto ao trabalho. Ao chegar ao ponto de ônibus, percebeu que o circular demorava a chegar e resolveu ir a pé.  Passando por uma loja de eletroeletrônicos, viu a notícia de que surpreendentemente metade da frota de circulares da cidade havia sido roubada na madrugada anterior; soube então o porquê do atraso e apertou o passo.  Chegando a uma enorme praça, se lembrou de que nunca fora antes ao trabalho caminhando, e que não sabia onde estava.  Pediu informação aos transeuntes que lá estavam e não conseguiu nada; passou em lojas; passou em casa loterias; passou em lanchonetes, uma pizzaria e em uma tenda de bacalhau. Desistiu de procura e se sentou. Tentou ainda pensar em uma solução, mas não havia mais. Começou a chorar, chorou de gritar; lamentou ter uma memória tão frágil e uma vida tão metódica. Chorou pelas vezes em que ele não se lembrou do quão limitada era a sua realidade; lamentou que o acidente de hoje não dependesse nem de sua memória, uma vez que nunca tinha ido a pé ao trabalho e que essa memória simplesmente não existia. Chorou e gritou até ter uma crise de nervosismo e parar; após trinta minutos sentado, inerte, esquecera-se porque tinha ido chegado até lá e continuou sentado olhando o movimento e repetindo para si mesmo. 

- Mas como essa praça é bonita!

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Transeuntes

Enjoado da monotonia do novo ano,
Horácio foi à praça á tarde folhear seu livro velho.
E entredito pela leitura, deixou o relógio correr.
Foi ao perceber uma leve brisa, dessas de verão
que Horácio viu-a:


Com uma blusa verde de mangas regatas
e sapatilhas beges, o seu amor descia
em direção ao banco; tinha curtos cabelos alaranjados,
belos como a luz do sol, que atraiam a atenção até
dos objetos mais inanimados.


Pois que Horácio apaixonou-se pela transeunte.
Era linda! De proporções exatamente perfeitas.
Não vira seu rosto, mas sabia –sentia– que ela era a Vênus
de madeixas incandescentes que ele sempre procurara.


 Sabia perfeitamente que era ela
a Deusa de sua até então indefinida existência.
Pois então que a paixão fez com que Horácio permanecesse
sentado, a esperar que ela passasse;
E passou! Duas vezes, sem ao menos olha-lo,
 seguida pelo olhar dele, já em êxtase.


Mas tudo era breve, inclusive os momentos
em que a Deusa dos cabelos em brasas aparecia.


E o dia fez-se breve também;
e logo anoiteceu;
e a praça esvaziou-se;
deixando apenas os múrmuros
das folhas ao vento...


Ora, Horácio; pobre Horácio... Iludira-se mais uma vez
nas grandes galerias da paixão por uma transeunte.


Passou-se então o dia e o novo ano já não era tão
monótono como ontem...
E a Deusa loira, com seu vestidinho listrado,
caminhando lentamente
entre as estantes do mercado o maravilhara.


Ah, como era bela aquela loira; como Horácio a amava...