"Começamos oprimidos pela sintaxe e acabamos às voltas com a Delegacia de Ordem Política e Social, mas, nos estreitos limites a que nos coagem a gramática e a lei, ainda nos podemos mexer"
Graciliano Ramos

terça-feira, 18 de dezembro de 2012


Desencantos de outrem
e um remédio 
para o meu fastio.
Não é só um copo 
meio vazio,
é um mundo também. 

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Noite de concreto.


A lua escondida sai
no cantinho do céu azul
quando, linda,
                              a
                                 noite
                                          hai 
                                                kai.

sábado, 24 de novembro de 2012

Descobrimento.

Sempre tive a impressão de que tudo
que eu já pensei ou possa pensar ou 
qualquer coisa que eu tencionei colocar 
em prosa ou verso um dia
Drummond já escreveu por mim.

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Mais dois hai-kais

Peixinho

Disse o peixinho:
- Há um oceano entre nós, 
cavalo-marinho.



Cacofonia.

A cacofonia

veio para
destruir a poesia.

domingo, 30 de setembro de 2012

Sobre a idade.

Quando vi a notícia da morte da apresentadora Hebe Camargo não dei importância nenhuma, confesso. Mas ao rever e rever eu tive uma epifania: A gente fica velho à medida que os velhos da TV vão morrendo. É inevitável não se sentir mais velhinho ao saber que de hoje em diante não haverá mais o clássico programa da Hebe Camargo em lugar nenhum. Dessa reflexão saíram quatro versos.






À  Hebe Camargo.
A gente vai ficando velho
e vê que a vida corre
quando um velho de agora
de repente morre. 

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

quarta-feira, 18 de julho de 2012

Micro Ernesto

Ernesto queria se perder de amor, mas era tanto trabalho; tanta responsabilidade; tanto trânsito; tanto escritório; tanta empreita; tanta rua; tanto carro; tanta gente; tanta comida; tanta carta; tanto e-mail; tanto recado; tanto chuveiro; tanta avenida; tanta procura; tanto semáforo; tanta casa; tanto trâmite; tanta pergunta; tanta queda; tanta perda; tanta resposta; tanta viagem; tanta novela; tanto café; tanta caneta; tanta parada; tanto embargo; tanta viela; tanto endereço; tanta cidade; tanta derrota; tanto correio; tanto chefe; tanta mulher; tanto senhor; tanta cilada; tanto filho; tanto edifício;  tanto tanto que já no fim da tarde Ernesto se esquecia...

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Dos Insultados III

Estava instável o relacionamento de Antenor e Estela, desandando.  Juntos já há um ano, conheceram-se na faculdade de economia e planejaram um relacionamento duradouro e sem índices flutuantes; entretanto veio a crise.

- Antenor, era pra você ter chegado às 11h.

- Mas eu cheguei às 11h15! o que há?

- Vou ter que repetir?

Ou:

- Estela, você vai sair hoje?

- Sim, com a Laura; por que?

- Sempre essa Laura, porque você não casa com ela?

- Deveria! Ela não é cheia de frecuras.

Antenor achava que Estela havia enjoado da relação; ele também estava enjoado, mas acreditava que enjoar é algo normal nos casais. "É passageiro, o amor vem, o amor volta, é assim que as coisas são. Vejo tanto casal com mais de vinte anos de casamento que vive tão bem... impossível não terem se enjoado pelo menos uma vez!"
Foi conversar com um colega sobre sua ideia para superar a recessão: A pediria em noivado. "Tem que ser especial! Inesquecível. Se você for pedir mesmo, por favor faça alguma coisa grande!" dizia o colega, enquanto Antenor ouvia com suma atenção. Ele já pensava em uma surpresa maravilhosa; a impressionaria de tal modo que o noivado seria inevitável.
Foi até a casa de Estela fazendo mistério:

- Estelinha!

- Antenor, que foi?

- Vim te levar pra um passeio, como um pedido de desculpas.

No campo haviam uns balões; eis a surpresa: Antenor a levaria para um passeio de balão, e quando estivessem lá no alto, perto das núvens, a pediria em casamento. Plano engenhoso e romântico; sem dúvida fulminaria a crise entre os dois. O instrutor balonista mandou que subissem no balão.

Ele a surpreendeu; deixou Estela sem palavras, estava embasbacada. Mais uns minutos e seria o momento perfeito. Passaram-se e: "Estela, aceita ser minha noiva?" Disse Antenor com um anel em mãos.
"Noivado? Eu não acredito. Amo o Antenor, eu amo mesmo; mas eu amo mais o Leonardo. Noivar não posso. Que eu respondo agora, um passeio tão bonito, tão romântico, pra estragar com um pedido de noivado? Ele planejou direito, como vou dizer não? E como vai ficar o clima aqui?" Estela franziu o nariz, franziu a testa, franziu-se toda; gaguejou por minutos. Antenor mal percebeu, achou que era mesmo a emoção de receber um pedido tão importante: "Esse balão que não desce! Não posso recusar agora, mas nunca aceitaria. Aceito agora e quando descer digo que mudei de ideia. Ele vai ficar desolado, tanto esforço... E que calor está fazendo aqui; e tão alto, e essa vertigem, esse azul" Estela pensava, entre cambaleios. Viu o gramado lá em baixo, tão perto.

Quando já descia o balão, Antenor a viu despencar. Estela debruçou-se pra fora e acabou por cair.  O desespero foi total: "Por que fui inventar uma surpresa tão perigosa?". Pois estava aí estragado o pedido. Estela quebrou umas costelas e ficou uns meses de cama. Quando recuperou-se anunciou seu noivado; com Leonardo.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Elegia do bicho da elegia


Empreguei-me em construir um animal 
Tal qual o Elefante de Drummond.
É pena: Na tentativa de fazer viver o Leão
Me dei com um bicho disforme, sem charme;
Sem fome ou carne que lhe aprazesse.
Não era o Animal da poesia, era apático.
Não tinha os olhos de matéria prima infigurável;
Nem o corpo cheio daquele simpático 
Odor que só pessoas sensíveis podem exalar.


Era cinza e quadrado
Tinha as pernas duras
E precisava de rodinhas.
Não era o imaginado.
Nas suas formas cruas
Nem um sorriso tinha. 


Quis esconde-lo, destruí-lo
Queria dá-lo, enterrá-lo; 
E os que me visitavam: 


"Que mediocre seu animal; que figura deprimente.
Bicho mais indecente; criatura anormal."


Lamentei a criação, 
Esse animal sem culpa. 
E o escondi sem abraços
No armário onde vivem
Os meus bichos de fracassos.


E é resumidamente disso que nós vivemos.
Do que era pra ser e que não foi.
Do que não era pra ser e que não foi. 
dos animais que inventamos e escondemos.
Dos romances geniais que não publicamos;
Das ideias que não saem de uma voz rouca.
Das filosofias ideais que nunca propagamos;
Isso é o que é ser gente!
Isso que é ser Pestana, que é tocar polca,
Humano menor. 
Humano pior.

sexta-feira, 15 de junho de 2012

Dos Insultados II


 I
Amei em minha vida apenas duas mulheres. A segunda, minha esposa com quem tenho dois filhos que não entram no conto e a primeira, sobre quem escreverei. Chamava-se Lívia, nossas vidas entrelaçaram-se em dois períodos distintos, ambos deveras intensos. Conhecemos-nos no auge de nossa adolescência, começávamos o ensino médio. A primeira vez foi em um desfile cívico pela escola; tinha deixado minha carteira com um professor e esse pediu a ela que me entregasse. Desde então, nos tornamos íntimos e suspeitamente unidos. Meses depois começamos a sair, tudo às escondidas mesmo sem a necessidade – Ficamos tanto tempo juntos como amigos que todos acabaram por duvidar da existência de um relacionamento – e duramos dois meses. Acabou repentinamente; certo dia, chegamos à escola e não houve beijo, nem carícia, nem mimo, e os dias que seguiram continuaram sem nenhuma demonstração de carinho a mais até que nossas vidas desvencilharam-se.
            
         II

Anos mais tarde voltamos a nos ver por conta de uma generosa coincidência.

- Lívia, o que faz aqui? Disse eu, boquiaberto.
- Eu quem lhe pergunto, Eduardo! Não sabia que conhecia minha Avó.

Já Recomposto, expliquei-lha a minha condição:

- Pois então, ela é amiga de minha “dinha”, e como ela vem muito até aqui, vivo a acompanha-la.

 Lívia havia se mudado para a casa de sua Avó, que coincidentemente recebia visitas diárias da minha madrinha. De início, nada.  Mas com a recorrência das visitas, fomos nos reafeiçoando. E em dois meses já estávamos nos olhando nos olhos. Certo dia a avó de Lívia comentou que nós formávamos um bonito casal; coramos apenas, mas coramos bastante. E eu não sei quando à Lívia, mas eu...

-Li. Janta comigo hoje?

Lívia fez como quem quisesse ir, mas recusou.

- Eduardo... Não posso.
- Mas por quê?
- Prometi à vovó...
         
       É verdade que prometia à avó dela todos os dias. Não suspeitei de início porque estava entusiasmado com a hipotética possibilidade de reatar. Passadas umas semanas comecei a imaginar que me evitava, que na verdade ela era apenas gentil comigo, ou estava fazendo alguma brincadeira de mau gosto típica de mulher cruel com a qual ela e assemelhava – Certa vez, em tempos de escola, convidou um amigo meu para ir ao cinema, e por prazer, passou-lhe a sessão errada; ela foi com sua mãe na sessão anterior –. Vivia a me deixar falando com as paredes, inventava afazeres ou simplesmente praticava o ócio longe de mim. Quando eu me cansava, ela voltava cheia de mimos, para me evitar novamente, perpetuando o ciclo.
  
              III

Quando comecei a trabalhar as visitas foram rareando; passava o dia todo no escritório de um amigo meu, o ajudando, e quando voltava pra casa só pensava em descansar. Nesse período comecei a tomar conta de como eram esfinges as mulheres. Lívia subitamente tornou-se amável, de modo que insinuasse claro interesse sexual. Na época pensei que eram saudades, inflei meu ego, mas não; não era tão simples. Aquela mudança de comportamento – isso é claro agora – era sinal de que ela perdia a minha rédea, a esperta Lívia estava deixando de ser a supressora, não sentia mais que a minha existência só era possível em favor a dela.

- Du... posso te perguntar uma coisa? Perguntou-me ela, com os dedos entre os meus.
- Fala, Lívia.

                Falava em tom choroso, de manha. Olhava pra cima e depois se escorava no meu ombro; depois de um tempo eu já tinha decorado seu procedimento espontâneo.

– O que você tem feito? Mal vem me ver agora...
- Ando trabalhando muito, fico sem tempo.
- Entendo, mas arranje unzinho pra mim, Du, eu sinto sua falta...

                Dali a três meses e estávamos namorando. Namorando! Espanto-me agora não saber como começamos, mas não importa, a questão é que começamos. Comecei a dar escapadelas do trabalho para ir vê-la escondido. Tínhamos vinte e um anos ambos e nossa ânsia de nós mesmos urgiu que eu propusesse o famigerado noivado. Daí mais uns meses veio o noivado. Noivado que eu só não queria mais que um par de sapatos luxuosos que eu tinha visto na cidade um dia antes de fazer a proposta à Lívia.

                IV

Os sapatos merecem uma narração à parte. Eu ia ao trabalho numa quarta ou quinta feira e acabei parando em uma vitrine no meio do caminho. Fora um par de sapatos, nunca tão luxuosos. Vi aqueles sapatos homéricos e logo os imaginei em meus pés, e eu encarnado em Hermes entregando mensagens aos deuses.  Admirei aquelas obras de arte o suficiente para me atrasar. Seus detalhes eram ínfimos, seu formato simétrico e sua cor limpa o faziam perfeito. Aquele sapato era, definitivamente, um soneto. Comentei com todos com quem pude. Até levei alguns para ver aqueles magníficos sapatos na vitrine, inclusive Lívia, que achou graça. Dizia “não entender a paixão por coisas ornamentadas que eu tenho” e brincou que eu não era apaixonado por ela, devido ao fato dela ser ornamentada na ordinariedade. Ri e neguei, a amava mais que tudo no momento, não mais que os sapatos.

                V

Depois de noivados festejamos com nossas minúsculas famílias e continuamos a viver normalmente. Nós nos amávamos infinitamente e passávamos horas trocando meiguices e carícias. Não falo do sexo para preservar a inocência do conto, mas não nego sua existência; subentende-se. Passamos dias maravilhosos de amor mútuo e de carinho exagerado, mas em duas semanas Lívia começou com umas tosses e em prazo de um mês fora descoberta uma moléstia grave. Lívia morreria em breve. Foi um choque para todos, principalmente para mim. Chorei, discuti com médicos, trabalhei dobrado para custear os remédios, mas foi em vão.

    Ia visita-la toda noite, quando tinha tempo livre. Dormia em sua casa. Certa vez, quando eu saia, agarrou meu braço:

- Eduardo, me promete que se eu morrer você não me esquece?
- Você não vai morrer...
- Mas e se? Perguntava Resoluta.
- Que conversa tonta, meu doce, é lógico que eu não te esqueço.
- Promete que segue em frente?
- Deixa de besteira, vem tomar seu remédio.

                Dois dias depois Lívia faleceu. Foi uma infelicidade imensa. Meu luto foi secular, não a queria longe de mim, nem sabia o que fazer. Pensei em sair da cidade, me matar, começar uma terapia, me alistar e uma gama de outras soluções fundamentadas no escapismo, mas foi em vão. Minha desolação perdurou mais ainda do que o luto. Só vim a melhorar no fim de tudo, quando uma senhora para quem eu contei minha história disse que “A minha noiva tinha virado um anel de saturno”.¹















Nota¹: Esqueça a comoção quem me lê, menti todo o último capítulo. Queria ares de tragédia e pari um dramalhão; pois que pinguemos os is. O que tenciono escrever aqui é a verdadeira derrocada do meu relacionamento; mais simples, e também, naturalmente mais sem graça. Dois meses após o meu noivado, em uma das minhas escapadelas do trabalho fui até a casa dela e –suspense – encontrei uma carta cheia das mais tenras escusas. Lívia havia fugido para completar os estudos. A carta dizia que não podia viver daquele modo, que queria fazer carreira, ter renome. Entristeci instantaneamente, a amaldiçoei como pude e ao sair, furioso, vi uma caixa cheia de ornamentos que me atiçou. Num gesto mais de vingança do que de curiosidade, toquei na propriedade que não era minha. Eram os sapatos da vitrine, os magníficos sapatos da vitrine, me encarando, implorando para que os calçasse. Como se a vida estivesse me mandando os mais sinceros perdões. Os calcei, mais como espólio de guerra do que como lembrança e fui pra casa. Não os calço mais: tenho novos. A própria vida tomou-os de volta, retirando assim as escusas e as demonstrações de complacência. 

terça-feira, 5 de junho de 2012

Dos Insultados I


I
A capital de Adalberto é palco de tragédias e comédias diariamente, pois João, o filósofo, fez o impensável, escreveu nas linhas de sua própria vida uma tragicomédia sem nenhum fator atenuante. O chamado João Adalberto ainda sofria, na casa de sua mamãe, com sua decepção filosófica. João procurava algo para justificar seu fracasso no campo da metafísica, algo pelo qual não se perdoava, naturalmente. Mas antes, deve-se colocar os pingos nos is. Seis meses antes, estavam todos os seus amigos e familiares festejando sua nova tese em sua casa no interior sem saber que exatamente no dia seguinte seu motivo de festa acabaria; Adalberto criou um conceito dicotômico para dois ambitos sociais: O real e o virtual. Seu trabalho poderia seguir uma linha revolucionária, porém acabou muito semelhante às teorias platônicas. A editora lhe enviou uma carta de rejeição e uma insinuação sutil de que sua tese era plágio. 



Choque! É o fruto do trabalho intelectual do médio homem. Não todos os homens, porém não poucos. João fez-se inconsolável, não comia, e pouco falava, nas raras vezes em que arriscava uma frase, eram lamúrias: 


- Não é possível, o que essa gente sabe de filosofia?! O básico! Querem apenas vender e vender. Minha tese não é um best seller!


- Meu bem, calma, assim você vai acabar desmaiando. Ouça a o que a sua mãe lhe disse, dê um tempo, descanse...


Sua mulher, foi quem o impediu de entrar em colapso. O fez ir para casa de sua mãe na capital, onde ele ficou durante sua recuperação.


II


Foram seus seis meses de maior martírio, ah, como sofreu! Habituou-se a pensar que era um mau-filósofo e que se não era bom nem no que gostava de fazer, não havia lugar pra ele nesse mundo. "Nem pra fazer o que amo eu sirvo, mas que culpa tenho eu se não tenho nenhum talento? Não, a culpa não pode ser minha, eu fiz tudo direito, tudo certinho; deve ser mamãe, os genes da parte dela nunca pareceram genes de pessoa genial, sim, a culpa é da senhora minha mãe! Mas... Ela sempre me deu tudo... Sempre me incetivou, não pode ser mamãe! Aqueles almoços maravilhosos não podem ser falta de qualidade genética. Papai, foi ele! Não, não, nem o conheço... Se o meu professor de filosofia tivesse cobrado mais de mim, talvez..."
Não havia um culpado que se encaixasse, era ele, a teoria dele e Platão; nem Platão ele poderia culpar. Viveu há tanto, há tanto... Nunca poderia imaginar que entre as linhas de "A república", talvez estivesse fadando João à infelicidade . Seus dias passaram-se cômicos, a sua mãe cuidava dele com zelo infinito, sentia-se de novo com onze anos, pueril, às vezes birrento. Sua condição era primordialmente a de aceitar o seu futuro ordinário, já que não era bom o suficiente para que o mundo o deixasse crescer. Sua existência jamais fora tão infeliz, pensava em trabalhar no campo, ou fazer trabalho braçal, porém simples; talvez a base da pirâmide social fosse mais feliz sem toda essa necessidade de entender o mundo real, o mundo ideal, a sociedade, os sonhos, a política, o coletivo e o individal; talvez o conhecimento só o levasse a um caminho sempre decepcionante. Seria assim pra sempre, todos nós presos nesse plano infeliz tendo ideias infelizes e fadados a tão indesejada anomicidade desde o início dos tempos.


- Isso, desde o início dos tempos... Diabo, como não me passou pela cabeça antes?! 


III


Finalmente! Sim, João Adalberto chegou a uma senhora epifania! Concluiu que todos nós, em nossos pensamentos infelizes, desde o início dos tempos pensamos coisas que se repetem. Bastava pensar na quantidade de gente que há no mundo, na quantidade de gente que havia e no fato de todos pensarem individualmente. Quem não garantiria que já tivessem pensado a Odisseia antes mesmo dela ser escrita? Sendo assim o pensamento é público, nunca poderá ser patenteado, pois estaria atentando contra a propriedade de milhares - quem sabe milhões - de outras pessoas que também pensaram a mesma coisa. Então Dom Quixote não é só de Cervantes, O Discurso do Método não é inteiramente de Descartes e a filosofia fracassada de João não era integralmente platônica. 


"Como sou genial, além de criar uma filosofia nova, recuperei a minha antiga..." Adalberto não cabia em si. Em algumas semanas já havia escrito o seu ensaio sobre a propriedade universal do pensamento criativo e estava festejando até dentro do banheiro. Marcou uma segunda grande festa - talvez o fracasso esteja na festa - onde comemorou o seu sucesso filosófico com toda a comunidade acadêmica da capital. Uma semana depois as cartas de rejeição das editoras chegaram. Não contava com a filosofia moderna do século XX, que já havia feito essa constatação. 

IV


Morreu idoso, residindo na casa de sua mãe, na total ordinariedade. 

terça-feira, 29 de maio de 2012

Poema Burguês.

Ame as suas meias, todas elas.
Meias secas mudaram o rumo de guerras,
Na selva, no pântano, no litoral;
Na guerra de trincheira, ou movimento radical,
Senhoras da estratégia e da ternura.
Nem os sapatos, os que enfrentam a dura
Realidade de tocar o duro chão, merecem
O reconhecimento da meia.
(O sapato é proletário, eia!)

A Meia não. Não toca o chão.
É fina a seda, é da nobreza.
É delicada, a santa meia.

Por isso, não vá à faculdade de meias, sobretudo, não adentre a escola de letras.
Lá são todos uns comunistas.

segunda-feira, 23 de abril de 2012

A dedicatória.

Herivelto era só.
Trabalhava só, comia só, vivia. 
Herivelto lia,
Mas era só. 
Nunca ganhara um presente. Coitado,
Era só...
Numa tarde de maio veio até Herivelto
Uma ideia:
Presentearia a si com um livro. 
Presenteou-se!
Não foi aquilo que esperava,
Faltava algo. Faltava algo 
importante. 
Herivelto passou dias pensando. Não descobriu.
Frustado, Herivelto acabou tomando 
Coca-cola com cianeto de potássio. 


Mas que bobo é esse Herivelto, 
Esqueceu da dedicatória.

domingo, 8 de abril de 2012

Sacola.

A vida era mais prática
no tempo em que havia
sacolas nos supermercados.
Agora a vida é uma tormenta. Comer ficou difícil,
assim como ficou difícil voltar pra casa.
Para onde foram minhas sacolas?
Não falam mais comigo;
não deixaram carta de despedida;
nem mesmo um recado na geladeira
Cansaram-se desse mundo mundano,
bicho-papão;
foram para Cuba, viver.
Ah, que aperto no coração
me dá saber
que não há mais sacolas nos supermercados.
Sacola, minha querida,
Volte...

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Porcos-com-asas.

Leônidas era só aborrecimento. Jovem ainda, agia como um ranzinza sexagenário, desses que desistiram da vida sem nem ao menos sabê-la. Era conhecido, tinha amigos e capital. Nunca visto só, Leônidas tinha sua infelicidade assistida por intelectuais, esportistas e proletários. Aborrecia-se de tudo; principalmente de suas posses. Não havia coisa que já não o tivesse entediado. Entediava-se do que tinha e entediava-se do que os outros tinham, não havia solução.

Pois levantou-se esses dias com uma ideia fixa. E telefonou para um amigo próximo:

                - Ô Pasquim, você tá ocupado?

                - Ã? Quem é quem fala?

                - Mas é o Leônidas! Estou com uma ideia, mas preciso de alguém que saiba de animais.

                - Ah, Leo! Faz assim, almoçamos juntos!

Foram ao restaurante e Leônidas expôs sua ideia. Queria criar um porco-com-asas. Um porco com asas! Pasquim ficou estupefato; não existem porcos-com-asas. Suspeitou que fosse brincadeira, ao ver que não, desabafou: "Está louco."

Para Leônidas um porco-com-asas era a única coisa que o faria feliz! Era único, e mais, metafísico! Pasquim desatou a rir; de fato não havia mesmo porco-com-asas. Mas ao  ver resistência de Leônidas, resolveu lhe indicar alguns homens mais estudados, para ver se tinha paz. E indicou. E lá foi Leônidas procurar seu porco alado pra criar 

"Não!" Foi o que encontrou. Não havia mesmo porco-com-asas nenhum. "Mas onde já se viu um louco desse?" pensava um biólogo indicado pelo Pasquim. Outro, expulsou Leo em meio a uma crise de risos. A felicidade não estava nem aí para Leônidas mesmo, mas esse não desistia! Não podia ser cachorro, gato ou tartaruga, havia de ter um porco-com-asas. E pesquisou, sozinho é claro. Soube de um lugar no Tibet, tão metafísico quanto seu porco. Diziam haver lá criaturas parecidíssimas com o que o pensamento de Leônidas definira como "porco-com-asas".

Mês depois partia ele para o Tibet! E mais mês depois voltava ele! Encontrou um paraíso em terra, lugar onde homem nenhum já mais colocou os profanos pés. Viu novos animais, cachoeiras cujo sentido da água era justamente para cima, monstros marinhos e pequenos homens verdes que diziam ser de um planeta vermelho e que estavam lá para estudar. Viu também porcos-com-asas! Voavam sobre as montanhas e árvores, e com sua pele rosadinha, seus rabinhos enroladinhos e suas asas de arcanjo, faziam sons característicos dos porcos muito acima dos arranha-céus. E o problema está aí: Os porcos-com-asas existiam. Existiam mesmo!

Leônidas entediou-se deles e voltou pra casa com as mãos vazias.

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Ao Eça.

Acordou certo dia e exclamou: " Não sou feliz na cidade,
Vou pras serras!"
E foi mesmo.
Voltou semanas depois, ainda infeliz.
Infeliz na cidade
E Infeliz na serra.
Ô seu Eça, que grã-ventura?
Ventura não há.

terça-feira, 20 de março de 2012

Saudosismo.

O ser-poeta não é mais o ser de antigamente..
Ah, antigamente... As mulheres amavam os poetas.
O poeta era príncipe!
O poeta era engenheiro!
Era Poetinha!
Hoje é o que?
As mulheres já não amam os poetas.

quinta-feira, 8 de março de 2012

Papo de porta.

               Na minha cozinha há uma porta que nunca para; hora aberta; hora fechada. É um horror. Eu, particularmente, sempre a fecho. Porém, esses dias, ao me ver fechá-la, minha mãe protestou.
               
                - Mas que saco, como você é chato, Pedro! Deixe a droga da porta aberta, ninguém aguenta esse calor.

                - Mas mãe...
               
                O protesto metamorfoseou-se em ordem, e depois proclamação... Cedi.  Ficou a porta aberta pelo resto do dia. Não me conformei, é fato; cedi, pois forças ocultas me impediam de continuar (Sei bem como é, Jânio). Mas ao olhar a porta aberta, e ver toda a luz que de fora entrava, pensei com meus botões: Pra que serve a porta?
               
                Duvida cruel. Não sei da origem da porta, nem tive o ânimo de descobrir; não sei seus feitos históricos, não sei quem a popularizou, nadinha disso. Apenas sei que ela abre e fecha; Esconde o casal de namorados, mostra a o jardim do palacete, e é a moldura preferida das casas de praia. Machado descrevia as almas como se fossem casas; a de Bentinho tinha portas frouxas; ah se Bentinho tivesse uma fechadura; Ia-se embora uma grande obra. Conclusão que prova o óbvio: São bem vindas as portas abertas na arte. 

                Há, porém, pessoas como eu, que acreditam na utilidade da porta fechada. Se houvessem mais delas trancadas, quem sabe não nos habituaríamos a nos levantar para abri-las? Portas sempre abertas não despertam o nosso sentimento de incômodo com a luz que não entra na sala, ou com o calor que faz na cozinha. Ela fechada é o primeiro passo para a porta aberta, o resto depende de quem a confronta. São atrás das fechaduras que vivem as surpresas, as portas abertas são alvos fáceis para os preguiçosos. Divagando sobre portas, portões e portinholas, recordo que a Fernanda de García Márquez dizia que as essas foram feitas apenas para se fechar; concluo e fecho a porta da cozinha.

                Peço perdão pela desobediência, mas outra Fernanda (essa minha mãe) não é fruto de um Nobel de Literatura.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Nota de carnaval.

"Carnaval, carnaval, carnaval. Fico tão triste quando chega o carnaval." Não é só o Melodia que fica triste quando chega o carnaval. Muitos outros também se entristecem com tão alegre comemoração. Porém, apenas o nosso grande cantor perdeu Maria, os outros... 

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Crônica experimental acerca de literatura e carros importados.

Estava eu a ler um livro referente a crônicas que peguei com meu professor quando recebi um choque de realidade. No ensino fundamental eu não tive contato com nenhum gênero literário, apenas com raros poemas do Drummond que são usados nos livros didádicos ( coisa que vim a perceber muito tempo depois, quando já tinha uma pequena experiência com textos e poemas Drummondianos). 


Fui infeliz na minha descoberta. Chateei-me ao perceber que minha relação com a literatura poderia ter sido adiantada, e preocupei-me com os desígnios da nação. Uma vez que se eu não tive contato com a literatura no ensino fundamental, milhares, centenas de milhares de outros jovens também não tiveram, e sendo otimista, uma pequena parcela desses jovens tiveram um contato mais íntimo com textos literários posteriormente. É evidente que a maioria das escolas do ensino médio tem a leitura de clássicos da literatura brasileira nos planos de aula de literatura, afinal, os vestibulares pedem algumas obras como Dom Casmurro e Iracema, porém os pobres livros acabam se tornando alvo do preconceito e da inexperiência literária dos jovens sendo taxados de "chatos", "entediantes" , ou em casos mais extremos, "incompreensíveis".

Com base nessa realidade assustadora eu desenvolvi um modelo utópico de sociedade que compartilharei nas linhas a seguir: Seria a inversão de valores. E justamente esta afetaria principalmente a camada jovem da sociedade, e também os adultos, as donas-de-casa, os grandes banqueiros e as concercionárias. A inversão de valores desvalorizaria os carros importados. Sim, apenas os carros importados, os ícones de liberdade física e financeira. Os carros seriam pros intelectuais, críticos literários, escritores, físicos, mendigos, e todos que estão às margens da sociedade. Os livros seriam para os webstars, jogadores de futebol e o Silvio Santos.

sábado, 28 de janeiro de 2012

Princesa tenebrosa.

A princesa tenebrosa
roubou o amor de Romeu
com sua graça engenhosa
que roubou também o meu.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

O Quintanesco.

O velho Raimundo viu chegar os tempos de esquecimento; cumprimentou-os e os convidou para almoçar. Raimundo vivera já oitenta e cinco anos, tão cheios de acontecimento que pareciam ser infinitos. Porém, o esquecimento veio para dizer que ele precisava descansar. E Raimundo, em sua cadeira virada para a janela do apartamento, concordava a cada vez em que o esquecimento levava-lhe uma memória. Quando a gente envelhece, a gente diminui, e as grandes memórias já não podem mais ocupar um tão disputado espaço em um cérebro cansado.  E a cada jantar, cada passeio imaginário pelas praças do exterior, a cada banho, o esquecimento levava uma grande memória de Raimundo; foram-se as guerras em que lutou, seus casamentos, seus filhos, todo o trabalho de sua vida e todos os romances Realistas. Tempos depois fui visita-lo; e espantem-se. Não há no mundo um velho mais feliz. Não há no mundo um tão pequeno velho. 

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Curto conto do esquecimento.

Dagoberto esquecia-se com frequência. Vivia uma rotina corrida e maçante que o impedia de se lembrar das diversas responsabilidades que um homem empregado tem.  Trabalhava em um escritório de promotoria que ficara famoso com o sucesso num caso em que Amadeu, o promotor, conseguiu com sucesso condenar um cão que matou outro cão em uma crise de ciúmes. Amadeu era o dono do escritório; inteligente e carismático, fez uma carreira meteórica dentro dos tribunais de todo o estado condenando criminosos que aparentavam acima de tudo ser inocentes. Educado, com uma tendência ao puritanismo, ele tinha  talento em culpar as pessoas, sentia a culpa delas.  O único defeito aparente de Amadeu era a sua recusa a contratar outro secretário, deixando pilhas e pilhas de processos e documentos nas mãos do raquítico Dagoberto.

O escritório ficava em uma avenida famosa do centro. Era fato que o prédio não chamava atenção; possuía uma fachada simplória e tímida; era uma casa da década de 40, encolhida entre um edifício residencial e um mercado médio. Dagoberto começava seu expediente às 8h e terminava às 17h30; trabalhava também até às 20h, em dia de mais trabalho, conseguindo assim faturar umas horas extras. Morava em um apartamento nos subúrbios com seus pais e um irmão mais novo.  Era magro, tinha cabelos curtos e olheiras enormes, com exatamente vinte e três anos, e um brinco na orelha. Terminara os estudos aos vinte anos, pois repetiu duas vezes o 6º ano, por falta de atenção; oriunda daí a ideia de seus pais de que ele tivesse algum déficit de memória. Sua mãe chegara a levar em alguns consultórios, que sempre confirmavam que o rapaz era completamente normal; receitavam um remediozinho, e o despachavam. Após várias idas sem encontrar nenhum sinal de deficiência mental, transtorno psicológico ou lesão no cérebro, seus pais desistiram de trata-lo e deixaram que a rotina se apoderasse deles novamente. Dagoberto, no começo tinha medo, pensava que era louco vendo a gravidade que a sua mãe dava aos seus esquecimentos; a primeira ida a uma clínica foi quando o pequeno Beto (como era chamado na infância) chegou da escola sem a sua bolsa que, pobrezinho, tinha esquecido no banheiro.  Desde antão, foram muitos horários perdidos e atrasos justificados unicamente pelos seus esquecimentos.  Quando seu irmão percebeu esse problema, adquiriu o perverso hábito de perguntar onde Dagoberto esquecera as coisas que na verdade ele não esqueceu, apenas para vê-lo em desespero; em dada ocasião, disse que Dagoberto esqueceu os documentos de sua mãe no escritório da promotoria, o fazendo ir até lá procurar; voltou apenas no dia seguinte, pois tivera medo de falar à mãe que perdeu os documentos dela. Quando o viu, o irmão de Dagoberto acabou-se em risos, contando a verdade para ele, que suportou pelo o fato de o algoz ser seu irmão mais novo.  Dagoberto até então era feliz, sua memória falhava em registrar a infelicidade diária que o cercava, assim como falhava em leva-lo à escola nos seus primeiros anos letivos.

Às 6h de uma quarta-feira, Dagoberto estava indo comprar pães; havia acordado 20 minutos antes. Ao voltar para casa, preparou o café para seus pais e para o irmão e se dirigiu a televisão para assistir alguma das dezenas de novelas que sua mãe tinha gravado ao longo da sua vida de dona de casa. Quando o relógio bateu 7h30, Dagoberto sentiu que se esqueceu de algo; e tinha de fato esquecido. Foi até a geladeira, guardou os litros de leite que deveria ter guardado na noite anterior, fechou-a e voltou para a sala. Assistiu a novelas até a hora do almoço, quando seus pais chegaram do trabalho e foram acordar seu irmão mais novo. Almoçaram juntos, como de costume, e depois foram os pais ao trabalho e o irmão caçula de Dagoberto a escola. Ficara sozinho novamente, sentindo-se ocioso, já.

Amadeu chegou ao escritório às 8h e viu que Dagoberto se atrasara novamente; estava já pensando em uma repreensão adequada quando começou a preencher os documentos que seu secretário deixara para fazer nessa manhã. Quando soarem 10h no relógio, Amadeu estava em desespero. Precisava protocolar e remeter documentos importantes e só tinha essa quarta para isso. Também havia hoje o julgamento um famoso ladrão de carros que fora pego dormindo no banco traseiro de uma camionete desaparecida há quatro anos. Praguejou contra Dagoberto com todas as suas forças e foi obrigado a pedir que enviassem outro promotor para a audiência, pois Amadeu estava ocupadíssimo hoje.  Ás 21h45 soube que o ladrão de carros foi inocentado e que seria solto de imediato. Foi a última má notícia do dia.

Em casa a mãe de Dagoberto estranhou que ele estivesse em casa no horário correto do expediente dele e perguntou como foi o trabalho. Dagoberto recebeu um choque de realidade e lembrou que trabalhava! Ficou atordoado e não soube o que fazer.”Como pude me esquecer?!”  e começou a andar pela sala em círculos, quase subiu pelas paredes, até que sua mãe o aconselhou a ir dormir e resolver esse acidente amanhã de manhã. 

Quando acordou, Dagoberto se arrumou e foi direto ao trabalho. Ao chegar ao ponto de ônibus, percebeu que o circular demorava a chegar e resolveu ir a pé.  Passando por uma loja de eletroeletrônicos, viu a notícia de que surpreendentemente metade da frota de circulares da cidade havia sido roubada na madrugada anterior; soube então o porquê do atraso e apertou o passo.  Chegando a uma enorme praça, se lembrou de que nunca fora antes ao trabalho caminhando, e que não sabia onde estava.  Pediu informação aos transeuntes que lá estavam e não conseguiu nada; passou em lojas; passou em casa loterias; passou em lanchonetes, uma pizzaria e em uma tenda de bacalhau. Desistiu de procura e se sentou. Tentou ainda pensar em uma solução, mas não havia mais. Começou a chorar, chorou de gritar; lamentou ter uma memória tão frágil e uma vida tão metódica. Chorou pelas vezes em que ele não se lembrou do quão limitada era a sua realidade; lamentou que o acidente de hoje não dependesse nem de sua memória, uma vez que nunca tinha ido a pé ao trabalho e que essa memória simplesmente não existia. Chorou e gritou até ter uma crise de nervosismo e parar; após trinta minutos sentado, inerte, esquecera-se porque tinha ido chegado até lá e continuou sentado olhando o movimento e repetindo para si mesmo. 

- Mas como essa praça é bonita!

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Transeuntes

Enjoado da monotonia do novo ano,
Horácio foi à praça á tarde folhear seu livro velho.
E entredito pela leitura, deixou o relógio correr.
Foi ao perceber uma leve brisa, dessas de verão
que Horácio viu-a:


Com uma blusa verde de mangas regatas
e sapatilhas beges, o seu amor descia
em direção ao banco; tinha curtos cabelos alaranjados,
belos como a luz do sol, que atraiam a atenção até
dos objetos mais inanimados.


Pois que Horácio apaixonou-se pela transeunte.
Era linda! De proporções exatamente perfeitas.
Não vira seu rosto, mas sabia –sentia– que ela era a Vênus
de madeixas incandescentes que ele sempre procurara.


 Sabia perfeitamente que era ela
a Deusa de sua até então indefinida existência.
Pois então que a paixão fez com que Horácio permanecesse
sentado, a esperar que ela passasse;
E passou! Duas vezes, sem ao menos olha-lo,
 seguida pelo olhar dele, já em êxtase.


Mas tudo era breve, inclusive os momentos
em que a Deusa dos cabelos em brasas aparecia.


E o dia fez-se breve também;
e logo anoiteceu;
e a praça esvaziou-se;
deixando apenas os múrmuros
das folhas ao vento...


Ora, Horácio; pobre Horácio... Iludira-se mais uma vez
nas grandes galerias da paixão por uma transeunte.


Passou-se então o dia e o novo ano já não era tão
monótono como ontem...
E a Deusa loira, com seu vestidinho listrado,
caminhando lentamente
entre as estantes do mercado o maravilhara.


Ah, como era bela aquela loira; como Horácio a amava...