"Começamos oprimidos pela sintaxe e acabamos às voltas com a Delegacia de Ordem Política e Social, mas, nos estreitos limites a que nos coagem a gramática e a lei, ainda nos podemos mexer"
Graciliano Ramos

quarta-feira, 18 de julho de 2012

Micro Ernesto

Ernesto queria se perder de amor, mas era tanto trabalho; tanta responsabilidade; tanto trânsito; tanto escritório; tanta empreita; tanta rua; tanto carro; tanta gente; tanta comida; tanta carta; tanto e-mail; tanto recado; tanto chuveiro; tanta avenida; tanta procura; tanto semáforo; tanta casa; tanto trâmite; tanta pergunta; tanta queda; tanta perda; tanta resposta; tanta viagem; tanta novela; tanto café; tanta caneta; tanta parada; tanto embargo; tanta viela; tanto endereço; tanta cidade; tanta derrota; tanto correio; tanto chefe; tanta mulher; tanto senhor; tanta cilada; tanto filho; tanto edifício;  tanto tanto que já no fim da tarde Ernesto se esquecia...

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Dos Insultados III

Estava instável o relacionamento de Antenor e Estela, desandando.  Juntos já há um ano, conheceram-se na faculdade de economia e planejaram um relacionamento duradouro e sem índices flutuantes; entretanto veio a crise.

- Antenor, era pra você ter chegado às 11h.

- Mas eu cheguei às 11h15! o que há?

- Vou ter que repetir?

Ou:

- Estela, você vai sair hoje?

- Sim, com a Laura; por que?

- Sempre essa Laura, porque você não casa com ela?

- Deveria! Ela não é cheia de frecuras.

Antenor achava que Estela havia enjoado da relação; ele também estava enjoado, mas acreditava que enjoar é algo normal nos casais. "É passageiro, o amor vem, o amor volta, é assim que as coisas são. Vejo tanto casal com mais de vinte anos de casamento que vive tão bem... impossível não terem se enjoado pelo menos uma vez!"
Foi conversar com um colega sobre sua ideia para superar a recessão: A pediria em noivado. "Tem que ser especial! Inesquecível. Se você for pedir mesmo, por favor faça alguma coisa grande!" dizia o colega, enquanto Antenor ouvia com suma atenção. Ele já pensava em uma surpresa maravilhosa; a impressionaria de tal modo que o noivado seria inevitável.
Foi até a casa de Estela fazendo mistério:

- Estelinha!

- Antenor, que foi?

- Vim te levar pra um passeio, como um pedido de desculpas.

No campo haviam uns balões; eis a surpresa: Antenor a levaria para um passeio de balão, e quando estivessem lá no alto, perto das núvens, a pediria em casamento. Plano engenhoso e romântico; sem dúvida fulminaria a crise entre os dois. O instrutor balonista mandou que subissem no balão.

Ele a surpreendeu; deixou Estela sem palavras, estava embasbacada. Mais uns minutos e seria o momento perfeito. Passaram-se e: "Estela, aceita ser minha noiva?" Disse Antenor com um anel em mãos.
"Noivado? Eu não acredito. Amo o Antenor, eu amo mesmo; mas eu amo mais o Leonardo. Noivar não posso. Que eu respondo agora, um passeio tão bonito, tão romântico, pra estragar com um pedido de noivado? Ele planejou direito, como vou dizer não? E como vai ficar o clima aqui?" Estela franziu o nariz, franziu a testa, franziu-se toda; gaguejou por minutos. Antenor mal percebeu, achou que era mesmo a emoção de receber um pedido tão importante: "Esse balão que não desce! Não posso recusar agora, mas nunca aceitaria. Aceito agora e quando descer digo que mudei de ideia. Ele vai ficar desolado, tanto esforço... E que calor está fazendo aqui; e tão alto, e essa vertigem, esse azul" Estela pensava, entre cambaleios. Viu o gramado lá em baixo, tão perto.

Quando já descia o balão, Antenor a viu despencar. Estela debruçou-se pra fora e acabou por cair.  O desespero foi total: "Por que fui inventar uma surpresa tão perigosa?". Pois estava aí estragado o pedido. Estela quebrou umas costelas e ficou uns meses de cama. Quando recuperou-se anunciou seu noivado; com Leonardo.