"Começamos oprimidos pela sintaxe e acabamos às voltas com a Delegacia de Ordem Política e Social, mas, nos estreitos limites a que nos coagem a gramática e a lei, ainda nos podemos mexer"
Graciliano Ramos

domingo, 17 de julho de 2011

"Sombreador"

Maria quando se vê no reflexo, elevador.
José trabalha na fábrica
Tem 30 minutos de almoço
Seu filho tem aulas de vôlei, levantador.
Maria da autoestima, embaixador.
Ela não acredita no matrimonio
Não acredita em hormônios
Acredita no trabalho, lavrador .
José não acredita no trabalho
Acredita no salário, trabalhador.
José e Maria, em casa
Quase todo dia, com trabalho
Sem família.
E no domingo quente, dos afazeres individuais,
VENTILADOR.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Acerca do "ir e vir"

Veja só como é engraçada essa cultura de desencontros.
São lábios pra cá
E rostos pra lá
É sensação de ser brinquedo
De fingir que não entende nada
Vai lá pensar no cúmulo, vai ser bobo
Volta perguntando “por quê?” “até quando?”
Não cansa de  achar que é brincadeira.
Não cansa de pensar estar cansado
Não cansa de se cansar
Não pensa em continuar
Cansa da desconversa
Cansa de ir e voltar
Cansa, Cansado de promessa

sábado, 9 de julho de 2011

Poética alheia III

A língua girava no céu da boca

A língua girava no céu da boca. Girava! Eram duas bocas, no céu único.

O sexo desprendera-se de sua fundação, errante imprimia-nos seus traços de cobre. Eu, ela, elaeu.

Os dois nos movíamos possuídos, trespassados, eleu. A posse não resultava de ação e doação, nem nos somava. Consumia-nos em piscina de aniquilamento. Soltos, fálus e vulva no espaço cristalino, vulva e fálus em fogo, em núpcia, emancipados de nós.

A custo nossos corpos, içados do gelatinoso jazigo, se restituíram à consciência. O sexo reintegrou-se. A vida repontou: a vida menor.


- Carlos Drummond de Andrade

sexta-feira, 8 de julho de 2011

A carta

Fiquei de mandar essa carta há meses atrás, porem me sucederam inúmeros imprevistos e acabei adiando mais do que devia. Deve você pensar que me acidentei, ou que acabei por desistir de me comunicar com você de vez. Mas não. E peço-lhe perdão se fiz mal a sua autoestima.

Aqui ainda é aquela turbulência. Os mesmos relatórios e o mesmo programa a noite. Confesso invejar você, que tem a vantagem de nunca revelar paradeiros. Talvez seja isso que eu inveje, o “não dar satisfações”.


Eu andei ocupado por um tempo devido aos balanços da firma, aos escândalos da prima, a dificuldade da rima, e a meu notável déficit de responsabilidade para com minhas muitas promessas. Esforço-me às vezes – como agora, por exemplo – as cumprindo. Com certo atraso.

Passei uns dias introspectivo. Pensando no que deveria escrever aqui, isso contribuiu muito com a minha demora. Não que eu queria estar omitindo a culpa, seria um paradoxo. Cogitei por tempos em te mandar um resumo em tópicos cronologicamente organizados. Mas você sabe, tenho dificuldade com datas. E ainda mais, seria deveras formal. Tentei escrever um poema de saudade, mas esse não me satisfez.  Aí pensei em reviver memórias e bons momentos. Mas a escassez de conteúdo me desanimou por completo. Devo ser sincero, não passamos o que se poderia chamar muitos de momentos felizes. E eu não escreveria uma carta de um parágrafo.  Ambos sabemos, não é segredo. Diria sobre a tarde na ponte. O jantar pós-formatura, uma ou duas tardes de ócio e mais o quê?

De certo queria ter aproveitado melhor nosso tempo. Mais abraços. Mais silencio. Quem sabe poderíamos ter nos entendido melhor. Ter escolhido o suspense ao drama. Mas então é que somos o que somos. E não fomos sábios com escolhas.

Um colega de trabalho nosso perguntou de você umas semanas atrás. Parecia ansioso. Fui esguio - que coisa feia essa de esquecer-se de buscar notícias para depois ouvir “e a saudade, está no bolso?” e coisas similares. Agora ao menos posso dizer que estou esperando respostas, o que é menos constrangedor.

Mandam abraços o seu ex-professor de psicologia - a quem culparei eternamente pela sua dificuldade em ser clara -; aquele seu ex-namorado do bar dos estudantes; a sua mãe, é lógico; e a sua empregada. Pediram se por gentileza você possa mandar cartões postais de onde estiver. Para terem pelo menos uma vaga ideia dos lugares que você está visitando.

O que deveria ser dito foi. Um pouco do que não deveria também. Mas que, porém, contribuiu para o volume da carta. Esperamos você para as próximas chuvas. Beijos de dois anos.

Obs: Está indo aí aquela sua crítica sobre evasão feita no colegial. Aproveite.