"Começamos oprimidos pela sintaxe e acabamos às voltas com a Delegacia de Ordem Política e Social, mas, nos estreitos limites a que nos coagem a gramática e a lei, ainda nos podemos mexer"
Graciliano Ramos

quarta-feira, 22 de junho de 2011

O contista mal contado.

Havia um homem da cidade grande, que respirava a rotina das megacidades, que almoçava a pressa das avenidas e que não tinha tempo para fazer a digestão.  Trabalhava não sei onde, para não sei quem. Não sei a que horas entrava. Mas não saía. Era homem jovem, com a face dos muitos outros jovens da cidade grande. Havia lá uns amigos aqui e ali. Todos dentro do sistema, ponteiros do relógio, precisos.

Pois que esse homem tinha casa. Não tinha mulher, tão pouco, filhos. Tinha lá sua máquina de escrever e a pressa de registrar um conto que o tirasse do seu trabalho e o jogasse em uma cadeira na editoria de qualquer jornal de metrópole. Um conto que mostrasse a disseminação dos mundos num lugar em comum. Que unisse mar e terra. Oriente e ocidente. Um romance étnico. Ou um épico moderno. Uma viagem pelo mundo, atrás do autoconhecimento.

Mas tudo o que ele escrevia eram primeiras frases. E depois escrevia em si mesmo uma frustração descomunal.  Sem conto, o contista desistia, fazia um café e trabalhava em casa. No meio do trabalho, às vezes, vinha a ele uma ideia. Ele cessava qualquer movimento. Esperava ela tomar forma para então correr até a escrivaninha. Não aprendeu ainda que as ideias correm mais rápido que ele. Correm dele - Não se sabe o quanto alcança uma ideia, mas até mesmo dentro dos mais rápidos trens-bala você não é capaz de alcança-la.

 Não sei se tomava café da manhã, tomava café. Tomava um porre. Tomava o que fosse, pois tinha pressa. A cidade não é a mesma toda hora. As avenidas mudam, os edifícios pulam de bairro em bairro. Sendo assim não há tempo de escolher. Ele corre para o ponto, do ponto para o trabalho.

Trabalhava num tal edifício. Emprego não se sabe. Colegas tinha, e eram muitos.  Era infeliz no trabalho, como talvez fosse infeliz em casa também. Na rua não era. Na rua é tudo rápido demais, não há tempo para caprichos como a infelicidade.

No almoço ele ia para um restaurante próximo, e começava a escrever.  Escrevia e apagava. Não se sabe o que há com esse homem. Talvez bloqueio de escritor, de empregado, de civil... O incógnito volta para o trabalho e passa sua tarde infeliz. Rotina.

Acordou um dia desses e não foi tomar o café. Não se embriagou, não comeu, nem nada. Fez tudo com uma lentidão incomum e interiorana. Após se vestir. Foi até o quarto onde estava a sua máquina de escrever. Finalmente veio a inspiração! Já era hora de começar seu conto e ter sucesso. Pela primeira vez alcançou um parágrafo. Aliás, conseguiu o começo, meio e fim!

Tudo aconteceu rápido, faltou ao seu trabalho e passou o dia a criar. Não recebeu ligação, nem coisa do gênero. Chegada à noite, ele concluiu sua arte e imediatamente mandou para o jornal. Carreira de cronista ao menos ele esperava. Estava ciente de que a mudança chegara.

E então que no dia seguinte ele acorda com pressa. Toma seu café, ou não sei o que. Corre para o trabalho. Almoça. Volta ao trabalho. Vai para a casa. E trabalha.

Um epílogo para isso não era nem ao menos necessário. Todos sabem como é a metrópole. Sabem também que após o seu dia de escritor, nada mais aconteceu. E foi sendo repetida a rotina metódica do contista. E foi repetindo a pressa, repetindo a rua, a infelicidade.

domingo, 19 de junho de 2011

O primeiro primo.

E o que o pobre primo queria? Queria vê-la procura-lo! Desejava que ela desse sua falta. Esperava uma carta, telefonema, qualquer coisa que demonstrasse sua importância. Necessidade de presença. Era o teste derradeiro, se ele era realmente amado, receberia um sinal. E isso não era de tudo orgulho. Era também uma insegurança e um medo de não ser lembrado que o esmagava com o passar dos minutos.

Convém contar que ele se sentiria patético a telefonando. Se ela não dava importância, porque dar ele? E ele dava, na verdade, mas ninguém precisa saber desses detalhes. Ele só queria provar para mim que ele tinha uma namorada, e mais do que para mim, ele esperava provar para ele também!  Eu, mantendo minha rotina até então, não percebia o exibicionismo escondido na espera de meu primo.

E antes fossem apenas minutos, mas eles se somavam, e ficava mais cômodo transcrevê-los em horas. Meu primo, impaciente e disciplinado sofria quieto à mesa. Seus dedos mostravam a notável esperança e pressa, sede de ver um sinal, por menor que fosse!  Mexiam-se sem pausa, com um ritmo de impaciência e medo.

Pensei em lhe mandar uma mensagem de texto com o número bloqueado para aliviar a dor do silencio que acometera o coitado. Acabava de me perceber sensibilizado com o sofrimento alheio. Mas, porém, tinha também esperança de ouvir a tão detestada por todos nessa casa melodia do telefone. Ou melhor, poderia tocar a campainha! Imagine a alegria, ela vir pessoalmente mostrar que se importa com esse meu familiar inseguro! Viria afobada e diria nas mais doces palavras que não aguentara ficar distante de seu tão amigo e carinhoso rapaz, que resolvera ir vê-lo pessoalmente. Que se sentia acabada a cada minuto de silencio de seu telefone celular, e que precisava vê-lo para ter paz. E o orgulho do primo? Era tudo que ele precisa. Seria plenamente homem, e amado. Alguém por fim!

Dão-se então quinze para a meia noite. Via-me curioso, sem o anseio de me repousar. Somei minhas esperanças às dele. Soma que resulta em numero negativo. Pois toca o telefone, e movido por uma felicidade que tinha o deixado há horas ele pula instintivamente para cima desse. Passa-se um minuto de “uhm” “ah” “tá” e ele, completamente derrotado, com o orgulho ferido nos órgãos vitais, coloca o veículo de comunicação no gancho e senta-se a mesa novamente.

Quietíssimo, acabara de receber uma ligação de minha mãe, que o mandara avisar que eu iria embora amanhã pela manhã. Ele, com meia dúzia de palavras meio mortas repassa-me a mensagem e pousa a cabeça sobre os braços cruzados. Ela não o ama. Nem ao menos o ligou.

O primo, pobre primo! Desistira agora de toda a esperança restante. Desistira até da esperança que eu depositei nesse impasse. Decide dormir. Sei que na verdade, desejara ele dormir para sempre, entrar em coma profundo, não para fugir, mas para punir essa namorada ingrata com seu silencio. Coisa que não aconteceu. Pois no outro dia, ele teve de acordar.