"Começamos oprimidos pela sintaxe e acabamos às voltas com a Delegacia de Ordem Política e Social, mas, nos estreitos limites a que nos coagem a gramática e a lei, ainda nos podemos mexer"
Graciliano Ramos

terça-feira, 5 de junho de 2012

Dos Insultados I


I
A capital de Adalberto é palco de tragédias e comédias diariamente, pois João, o filósofo, fez o impensável, escreveu nas linhas de sua própria vida uma tragicomédia sem nenhum fator atenuante. O chamado João Adalberto ainda sofria, na casa de sua mamãe, com sua decepção filosófica. João procurava algo para justificar seu fracasso no campo da metafísica, algo pelo qual não se perdoava, naturalmente. Mas antes, deve-se colocar os pingos nos is. Seis meses antes, estavam todos os seus amigos e familiares festejando sua nova tese em sua casa no interior sem saber que exatamente no dia seguinte seu motivo de festa acabaria; Adalberto criou um conceito dicotômico para dois ambitos sociais: O real e o virtual. Seu trabalho poderia seguir uma linha revolucionária, porém acabou muito semelhante às teorias platônicas. A editora lhe enviou uma carta de rejeição e uma insinuação sutil de que sua tese era plágio. 



Choque! É o fruto do trabalho intelectual do médio homem. Não todos os homens, porém não poucos. João fez-se inconsolável, não comia, e pouco falava, nas raras vezes em que arriscava uma frase, eram lamúrias: 


- Não é possível, o que essa gente sabe de filosofia?! O básico! Querem apenas vender e vender. Minha tese não é um best seller!


- Meu bem, calma, assim você vai acabar desmaiando. Ouça a o que a sua mãe lhe disse, dê um tempo, descanse...


Sua mulher, foi quem o impediu de entrar em colapso. O fez ir para casa de sua mãe na capital, onde ele ficou durante sua recuperação.


II


Foram seus seis meses de maior martírio, ah, como sofreu! Habituou-se a pensar que era um mau-filósofo e que se não era bom nem no que gostava de fazer, não havia lugar pra ele nesse mundo. "Nem pra fazer o que amo eu sirvo, mas que culpa tenho eu se não tenho nenhum talento? Não, a culpa não pode ser minha, eu fiz tudo direito, tudo certinho; deve ser mamãe, os genes da parte dela nunca pareceram genes de pessoa genial, sim, a culpa é da senhora minha mãe! Mas... Ela sempre me deu tudo... Sempre me incetivou, não pode ser mamãe! Aqueles almoços maravilhosos não podem ser falta de qualidade genética. Papai, foi ele! Não, não, nem o conheço... Se o meu professor de filosofia tivesse cobrado mais de mim, talvez..."
Não havia um culpado que se encaixasse, era ele, a teoria dele e Platão; nem Platão ele poderia culpar. Viveu há tanto, há tanto... Nunca poderia imaginar que entre as linhas de "A república", talvez estivesse fadando João à infelicidade . Seus dias passaram-se cômicos, a sua mãe cuidava dele com zelo infinito, sentia-se de novo com onze anos, pueril, às vezes birrento. Sua condição era primordialmente a de aceitar o seu futuro ordinário, já que não era bom o suficiente para que o mundo o deixasse crescer. Sua existência jamais fora tão infeliz, pensava em trabalhar no campo, ou fazer trabalho braçal, porém simples; talvez a base da pirâmide social fosse mais feliz sem toda essa necessidade de entender o mundo real, o mundo ideal, a sociedade, os sonhos, a política, o coletivo e o individal; talvez o conhecimento só o levasse a um caminho sempre decepcionante. Seria assim pra sempre, todos nós presos nesse plano infeliz tendo ideias infelizes e fadados a tão indesejada anomicidade desde o início dos tempos.


- Isso, desde o início dos tempos... Diabo, como não me passou pela cabeça antes?! 


III


Finalmente! Sim, João Adalberto chegou a uma senhora epifania! Concluiu que todos nós, em nossos pensamentos infelizes, desde o início dos tempos pensamos coisas que se repetem. Bastava pensar na quantidade de gente que há no mundo, na quantidade de gente que havia e no fato de todos pensarem individualmente. Quem não garantiria que já tivessem pensado a Odisseia antes mesmo dela ser escrita? Sendo assim o pensamento é público, nunca poderá ser patenteado, pois estaria atentando contra a propriedade de milhares - quem sabe milhões - de outras pessoas que também pensaram a mesma coisa. Então Dom Quixote não é só de Cervantes, O Discurso do Método não é inteiramente de Descartes e a filosofia fracassada de João não era integralmente platônica. 


"Como sou genial, além de criar uma filosofia nova, recuperei a minha antiga..." Adalberto não cabia em si. Em algumas semanas já havia escrito o seu ensaio sobre a propriedade universal do pensamento criativo e estava festejando até dentro do banheiro. Marcou uma segunda grande festa - talvez o fracasso esteja na festa - onde comemorou o seu sucesso filosófico com toda a comunidade acadêmica da capital. Uma semana depois as cartas de rejeição das editoras chegaram. Não contava com a filosofia moderna do século XX, que já havia feito essa constatação. 

IV


Morreu idoso, residindo na casa de sua mãe, na total ordinariedade. 

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