"Começamos oprimidos pela sintaxe e acabamos às voltas com a Delegacia de Ordem Política e Social, mas, nos estreitos limites a que nos coagem a gramática e a lei, ainda nos podemos mexer"
Graciliano Ramos

sexta-feira, 15 de junho de 2012

Dos Insultados II


 I
Amei em minha vida apenas duas mulheres. A segunda, minha esposa com quem tenho dois filhos que não entram no conto e a primeira, sobre quem escreverei. Chamava-se Lívia, nossas vidas entrelaçaram-se em dois períodos distintos, ambos deveras intensos. Conhecemos-nos no auge de nossa adolescência, começávamos o ensino médio. A primeira vez foi em um desfile cívico pela escola; tinha deixado minha carteira com um professor e esse pediu a ela que me entregasse. Desde então, nos tornamos íntimos e suspeitamente unidos. Meses depois começamos a sair, tudo às escondidas mesmo sem a necessidade – Ficamos tanto tempo juntos como amigos que todos acabaram por duvidar da existência de um relacionamento – e duramos dois meses. Acabou repentinamente; certo dia, chegamos à escola e não houve beijo, nem carícia, nem mimo, e os dias que seguiram continuaram sem nenhuma demonstração de carinho a mais até que nossas vidas desvencilharam-se.
            
         II

Anos mais tarde voltamos a nos ver por conta de uma generosa coincidência.

- Lívia, o que faz aqui? Disse eu, boquiaberto.
- Eu quem lhe pergunto, Eduardo! Não sabia que conhecia minha Avó.

Já Recomposto, expliquei-lha a minha condição:

- Pois então, ela é amiga de minha “dinha”, e como ela vem muito até aqui, vivo a acompanha-la.

 Lívia havia se mudado para a casa de sua Avó, que coincidentemente recebia visitas diárias da minha madrinha. De início, nada.  Mas com a recorrência das visitas, fomos nos reafeiçoando. E em dois meses já estávamos nos olhando nos olhos. Certo dia a avó de Lívia comentou que nós formávamos um bonito casal; coramos apenas, mas coramos bastante. E eu não sei quando à Lívia, mas eu...

-Li. Janta comigo hoje?

Lívia fez como quem quisesse ir, mas recusou.

- Eduardo... Não posso.
- Mas por quê?
- Prometi à vovó...
         
       É verdade que prometia à avó dela todos os dias. Não suspeitei de início porque estava entusiasmado com a hipotética possibilidade de reatar. Passadas umas semanas comecei a imaginar que me evitava, que na verdade ela era apenas gentil comigo, ou estava fazendo alguma brincadeira de mau gosto típica de mulher cruel com a qual ela e assemelhava – Certa vez, em tempos de escola, convidou um amigo meu para ir ao cinema, e por prazer, passou-lhe a sessão errada; ela foi com sua mãe na sessão anterior –. Vivia a me deixar falando com as paredes, inventava afazeres ou simplesmente praticava o ócio longe de mim. Quando eu me cansava, ela voltava cheia de mimos, para me evitar novamente, perpetuando o ciclo.
  
              III

Quando comecei a trabalhar as visitas foram rareando; passava o dia todo no escritório de um amigo meu, o ajudando, e quando voltava pra casa só pensava em descansar. Nesse período comecei a tomar conta de como eram esfinges as mulheres. Lívia subitamente tornou-se amável, de modo que insinuasse claro interesse sexual. Na época pensei que eram saudades, inflei meu ego, mas não; não era tão simples. Aquela mudança de comportamento – isso é claro agora – era sinal de que ela perdia a minha rédea, a esperta Lívia estava deixando de ser a supressora, não sentia mais que a minha existência só era possível em favor a dela.

- Du... posso te perguntar uma coisa? Perguntou-me ela, com os dedos entre os meus.
- Fala, Lívia.

                Falava em tom choroso, de manha. Olhava pra cima e depois se escorava no meu ombro; depois de um tempo eu já tinha decorado seu procedimento espontâneo.

– O que você tem feito? Mal vem me ver agora...
- Ando trabalhando muito, fico sem tempo.
- Entendo, mas arranje unzinho pra mim, Du, eu sinto sua falta...

                Dali a três meses e estávamos namorando. Namorando! Espanto-me agora não saber como começamos, mas não importa, a questão é que começamos. Comecei a dar escapadelas do trabalho para ir vê-la escondido. Tínhamos vinte e um anos ambos e nossa ânsia de nós mesmos urgiu que eu propusesse o famigerado noivado. Daí mais uns meses veio o noivado. Noivado que eu só não queria mais que um par de sapatos luxuosos que eu tinha visto na cidade um dia antes de fazer a proposta à Lívia.

                IV

Os sapatos merecem uma narração à parte. Eu ia ao trabalho numa quarta ou quinta feira e acabei parando em uma vitrine no meio do caminho. Fora um par de sapatos, nunca tão luxuosos. Vi aqueles sapatos homéricos e logo os imaginei em meus pés, e eu encarnado em Hermes entregando mensagens aos deuses.  Admirei aquelas obras de arte o suficiente para me atrasar. Seus detalhes eram ínfimos, seu formato simétrico e sua cor limpa o faziam perfeito. Aquele sapato era, definitivamente, um soneto. Comentei com todos com quem pude. Até levei alguns para ver aqueles magníficos sapatos na vitrine, inclusive Lívia, que achou graça. Dizia “não entender a paixão por coisas ornamentadas que eu tenho” e brincou que eu não era apaixonado por ela, devido ao fato dela ser ornamentada na ordinariedade. Ri e neguei, a amava mais que tudo no momento, não mais que os sapatos.

                V

Depois de noivados festejamos com nossas minúsculas famílias e continuamos a viver normalmente. Nós nos amávamos infinitamente e passávamos horas trocando meiguices e carícias. Não falo do sexo para preservar a inocência do conto, mas não nego sua existência; subentende-se. Passamos dias maravilhosos de amor mútuo e de carinho exagerado, mas em duas semanas Lívia começou com umas tosses e em prazo de um mês fora descoberta uma moléstia grave. Lívia morreria em breve. Foi um choque para todos, principalmente para mim. Chorei, discuti com médicos, trabalhei dobrado para custear os remédios, mas foi em vão.

    Ia visita-la toda noite, quando tinha tempo livre. Dormia em sua casa. Certa vez, quando eu saia, agarrou meu braço:

- Eduardo, me promete que se eu morrer você não me esquece?
- Você não vai morrer...
- Mas e se? Perguntava Resoluta.
- Que conversa tonta, meu doce, é lógico que eu não te esqueço.
- Promete que segue em frente?
- Deixa de besteira, vem tomar seu remédio.

                Dois dias depois Lívia faleceu. Foi uma infelicidade imensa. Meu luto foi secular, não a queria longe de mim, nem sabia o que fazer. Pensei em sair da cidade, me matar, começar uma terapia, me alistar e uma gama de outras soluções fundamentadas no escapismo, mas foi em vão. Minha desolação perdurou mais ainda do que o luto. Só vim a melhorar no fim de tudo, quando uma senhora para quem eu contei minha história disse que “A minha noiva tinha virado um anel de saturno”.¹















Nota¹: Esqueça a comoção quem me lê, menti todo o último capítulo. Queria ares de tragédia e pari um dramalhão; pois que pinguemos os is. O que tenciono escrever aqui é a verdadeira derrocada do meu relacionamento; mais simples, e também, naturalmente mais sem graça. Dois meses após o meu noivado, em uma das minhas escapadelas do trabalho fui até a casa dela e –suspense – encontrei uma carta cheia das mais tenras escusas. Lívia havia fugido para completar os estudos. A carta dizia que não podia viver daquele modo, que queria fazer carreira, ter renome. Entristeci instantaneamente, a amaldiçoei como pude e ao sair, furioso, vi uma caixa cheia de ornamentos que me atiçou. Num gesto mais de vingança do que de curiosidade, toquei na propriedade que não era minha. Eram os sapatos da vitrine, os magníficos sapatos da vitrine, me encarando, implorando para que os calçasse. Como se a vida estivesse me mandando os mais sinceros perdões. Os calcei, mais como espólio de guerra do que como lembrança e fui pra casa. Não os calço mais: tenho novos. A própria vida tomou-os de volta, retirando assim as escusas e as demonstrações de complacência. 

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