I
Amei em minha vida apenas duas
mulheres. A segunda, minha esposa com quem tenho dois filhos que não entram no
conto e a primeira, sobre quem escreverei. Chamava-se Lívia, nossas vidas
entrelaçaram-se em dois períodos distintos, ambos deveras intensos. Conhecemos-nos
no auge de nossa adolescência, começávamos o ensino médio. A primeira vez foi
em um desfile cívico pela escola; tinha deixado minha carteira com um professor
e esse pediu a ela que me entregasse. Desde então, nos tornamos íntimos e
suspeitamente unidos. Meses depois começamos a sair, tudo às escondidas mesmo
sem a necessidade – Ficamos tanto tempo juntos como amigos que todos acabaram
por duvidar da existência de um relacionamento – e duramos dois meses. Acabou
repentinamente; certo dia, chegamos à escola e não houve beijo, nem carícia,
nem mimo, e os dias que seguiram continuaram sem nenhuma demonstração de
carinho a mais até que nossas vidas desvencilharam-se.
II
Anos mais tarde voltamos a nos ver por
conta de uma generosa coincidência.
- Lívia, o que faz aqui? Disse eu,
boquiaberto.
- Eu quem lhe pergunto, Eduardo! Não sabia que conhecia minha Avó.
- Eu quem lhe pergunto, Eduardo! Não sabia que conhecia minha Avó.
Já Recomposto, expliquei-lha a minha
condição:
- Pois então, ela é amiga de minha
“dinha”, e como ela vem muito até aqui, vivo a acompanha-la.
Lívia havia se mudado para a casa de sua Avó,
que coincidentemente recebia visitas diárias da minha madrinha. De início,
nada. Mas com a recorrência das visitas,
fomos nos reafeiçoando. E em dois meses já estávamos nos olhando nos olhos.
Certo dia a avó de Lívia comentou que nós formávamos um bonito casal; coramos
apenas, mas coramos bastante. E eu não sei quando à Lívia, mas eu...
-Li. Janta comigo hoje?
Lívia fez como quem quisesse ir, mas
recusou.
- Eduardo... Não posso.
- Mas por quê?
- Prometi à vovó...
- Mas por quê?
- Prometi à vovó...
É
verdade que prometia à avó dela todos os dias. Não suspeitei de início porque
estava entusiasmado com a hipotética possibilidade de reatar. Passadas umas
semanas comecei a imaginar que me evitava, que na verdade ela era apenas gentil
comigo, ou estava fazendo alguma brincadeira de mau gosto típica de mulher
cruel com a qual ela e assemelhava – Certa vez, em tempos de escola, convidou
um amigo meu para ir ao cinema, e por prazer, passou-lhe a sessão errada; ela
foi com sua mãe na sessão anterior –. Vivia a me deixar falando com as paredes,
inventava afazeres ou simplesmente praticava o ócio longe de mim. Quando eu me
cansava, ela voltava cheia de mimos, para me evitar novamente, perpetuando o
ciclo.
III
Quando comecei a trabalhar as visitas foram
rareando; passava o dia todo no escritório de um amigo meu, o ajudando, e
quando voltava pra casa só pensava em descansar. Nesse período comecei a tomar
conta de como eram esfinges as mulheres. Lívia subitamente tornou-se amável, de
modo que insinuasse claro interesse sexual. Na época pensei que eram saudades,
inflei meu ego, mas não; não era tão simples. Aquela mudança de comportamento –
isso é claro agora – era sinal de que ela perdia a minha rédea, a esperta Lívia
estava deixando de ser a supressora, não sentia mais que a minha existência só
era possível em favor a dela.
- Du... posso te perguntar uma coisa?
Perguntou-me ela, com os dedos entre os meus.
- Fala, Lívia.
- Fala, Lívia.
Falava
em tom choroso, de manha. Olhava pra cima e depois se escorava no meu ombro;
depois de um tempo eu já tinha decorado seu procedimento espontâneo.
– O que você tem feito? Mal vem me ver
agora...
- Ando trabalhando muito, fico sem tempo.
- Entendo, mas arranje unzinho pra mim, Du, eu sinto sua falta...
- Ando trabalhando muito, fico sem tempo.
- Entendo, mas arranje unzinho pra mim, Du, eu sinto sua falta...
Dali
a três meses e estávamos namorando. Namorando! Espanto-me agora não saber como
começamos, mas não importa, a questão é que começamos. Comecei a dar
escapadelas do trabalho para ir vê-la escondido. Tínhamos vinte e um anos ambos
e nossa ânsia de nós mesmos urgiu que eu propusesse o famigerado noivado. Daí
mais uns meses veio o noivado. Noivado que eu só não queria mais que um par de
sapatos luxuosos que eu tinha visto na cidade um dia antes de fazer a proposta
à Lívia.
IV
Os sapatos merecem uma narração à
parte. Eu ia ao trabalho numa quarta ou quinta feira e acabei parando em uma
vitrine no meio do caminho. Fora um par de sapatos, nunca tão luxuosos. Vi
aqueles sapatos homéricos e logo os imaginei em meus pés, e eu encarnado em
Hermes entregando mensagens aos deuses.
Admirei aquelas obras de arte o suficiente para me atrasar. Seus
detalhes eram ínfimos, seu formato simétrico e sua cor limpa o faziam perfeito.
Aquele sapato era, definitivamente, um soneto. Comentei com todos com quem
pude. Até levei alguns para ver aqueles magníficos sapatos na vitrine,
inclusive Lívia, que achou graça. Dizia “não entender a paixão por coisas
ornamentadas que eu tenho” e brincou que eu não era apaixonado por ela, devido
ao fato dela ser ornamentada na ordinariedade. Ri e neguei, a amava mais que
tudo no momento, não mais que os sapatos.
V
Depois de noivados festejamos com
nossas minúsculas famílias e continuamos a viver normalmente. Nós nos amávamos
infinitamente e passávamos horas trocando meiguices e carícias. Não falo do
sexo para preservar a inocência do conto, mas não nego sua existência;
subentende-se. Passamos dias maravilhosos de amor mútuo e de carinho exagerado,
mas em duas semanas Lívia começou com umas tosses e em prazo de um mês fora
descoberta uma moléstia grave. Lívia morreria em breve. Foi um choque para
todos, principalmente para mim. Chorei, discuti com médicos, trabalhei dobrado
para custear os remédios, mas foi em vão.
Ia visita-la toda noite,
quando tinha tempo livre. Dormia em sua casa. Certa vez, quando eu saia,
agarrou meu braço:
- Eduardo, me promete que se eu morrer
você não me esquece?
- Você não vai morrer...
- Mas e se? Perguntava Resoluta.
- Que conversa tonta, meu doce, é lógico que eu não te esqueço.
- Promete que segue em frente?
- Deixa de besteira, vem tomar seu remédio.
- Você não vai morrer...
- Mas e se? Perguntava Resoluta.
- Que conversa tonta, meu doce, é lógico que eu não te esqueço.
- Promete que segue em frente?
- Deixa de besteira, vem tomar seu remédio.
Dois
dias depois Lívia faleceu. Foi uma infelicidade imensa. Meu luto foi secular,
não a queria longe de mim, nem sabia o que fazer. Pensei em sair da cidade, me
matar, começar uma terapia, me alistar e uma gama de outras soluções
fundamentadas no escapismo, mas foi em vão. Minha desolação perdurou mais ainda
do que o luto. Só vim a melhorar no fim de tudo, quando uma senhora para quem
eu contei minha história disse que “A minha noiva tinha virado um anel de
saturno”.¹
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